não orem mais por mim

[Este não é um texto provocativo. é apenas uma reunião de tudo o que tenho ouvido nos últimos tempos. Ouvido de gente que disse me amar, não apenas gostar de mim porque eu era o típico cristão evangélico cuja premissa de espiritualidade era a prosperidade financeira. Este é um texto confessional. Um texto que grita “quem ama não odeia o ser amado”. Um texto que pede “me perdoe por não pensar como você”. Um texto que implora “me deixem em paz”.]

— Tom, tá sumido, cara. Nunca mais te vi!

— Ué, continuo com os mesmos números, redes, sociais etc.

— Cara, ando preocupado com você. Não é mais o mesmo…

— Isso não é bom? Tô tentando progredir como gente.

— Então, mas fiquei sabendo que você tá virando mendigo…

— Simplicidade voluntária. É diferente. Se quiser, te explico.

— Cara, tô mesmo preocupado com você. Posso orar contigo?

— Comigo ou por mim?

— Por você…

— Sobre o que você quer orar por mim?

— Pra Deus te resgatar…

— Chegou atrasado, cara. Ele já fez isso.

— Então você voltou pra igreja de vidro?

— Não.

— Então você continua desviado?

— Eu diria que estou achado, mas depende de contexto e boa vontade.

— Boa vontade com o que, cara? Você abandonou a fé. Tá aí todo questionador.

— Eu abandonei as certezas, não a fé. E questionar é dever de todo ser a quem Deus deu cérebro, não?

— Bem que me disseram. Tão inteligente que perdeu o coração.

— Perdi o quê?

— Seu coração. Seu coração não é mais de Deus.

— Cara, tem mais algum jargãozinho pra soltar?

— Não. Podemos orar?

— Ok, você quer fazer uma oração evangélica por mim, é isso?

— Sim.

— Você então quer orar comigo, ou melhor, por mim, conforme as doutrinas protestantes, certo?

— Certo. Posso?

— Pode.

— Ok! Então repita comigo…

— Não dá!

— Por quê?

— Porque seria reza e os protestantes não rezam. Você ora e eu digo amém no final. Aprende-se isso em qualquer aula de catecúmenos…

— Catê o quê?

— Catecúmenos. Aulas de preparação para o batismo dos novos convertidos.

— Ok, então. Mas abra seu coração.

— Tudo bem. Vamos lá.

— Ó, doce Espírito Santo, viemos à tua presença neste momento…

— Ei, não dá.

— Que foi? Cara, vigia, o diabo não quer que você receba oração.

— Não. Não é isso. Você tá sendo herético.

— Tô sendo o quê?

— Tá cometendo heresia, cara.

— Por quê?

— Porque não se ora ao Espírito Santo, mas a Deus pai.

— Mas é tudo igual…

— Sério? Então Deus pai foi crucificado e Jesus apareceu sobre o Espírito Santo em forma de pomba…

— Como é? Não. Não, cara. Para com isso. Você tá com espírito de confusão.

— Tô nada. Eu até quero que você ore por mim, mas quero que ore direito, como bom evangélico protestante que cuida de seguir a sã doutrina.

— Ok, podemos continuar?

— Sim!

— Senhor Jesus, queremos colocar o Tom na sua presença…

— Ei, espera. Como assim? Deus é onisciente, cara. Não tem como eu sair da presença dele.

— É só modo de dizer.

— Modo de dizer é o mesmo que “vãs repetições”?

— Não. Posso terminar?

— …

— Senhor, estamos aqui para te pedir que o Senhor possa estar abençoando a vida desse irmão…

— Péra! De novo, cara. Deus é onipotente?

— É! Lógico! Mas o que tem isso a ver?

— Se Deus é onipotente, por que você tá pedindo pra que ele “possa fazer alguma coisa”? Ele pode fazer todas as coisas. Você tá sendo incrédulo.

— Ok, cara. Ok. Podemos?

— Sim.

— Deus, eu quero te pedir que o Senhor encha o coração de meu irmão de temor por ti…

— Ei! Tá errado!

— O que foi agora?

— A Bíblia não diz que Deus é amor?

— Sim.

— E também não diz que onde há amor não existe medo?

— Sim!

— Então, como você quer que Deus coloque medo no meu coração se ele é o Deus de amor?

— Cara, fecha os olhos e deixa eu orar que tô perdendo a paciência com você…

— Ok, vamos lá! Mas pra que fechar os olhos?

— Pra você conseguir se concentrar em Deus…

— Mas ele não está em todo lugar? Ok, ok. Olhos fechados…

— Deus, quero te pedir que o Senhor traga teu servo de volta pra verdade…

— Sério, cara? Qual verdade, a sua? A da igreja de vidro? A do pastor da TV?

— Quer saber, Tom? Desisto de você. Você bem merece o que está passando.

— Quer saber, cara? Acho melhor eu ir pra Zona*.

— Pra onde?

— Nada não. Esquece.

[*Zona é como chamamos um grupo de amigos que se reúnem num grupo do Facebook para discutir religião e espiritualidade sem dogmas ou amarras]

19 comentários Adicione o seu

  1. Stephanie disse:

    O melhor texto que li nos últimos tempos! Repito: Tom, vc é Deus.

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  2. Willyana disse:

    Sem palavras. Você é demais!

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  3. tabita abramo disse:

    fora que enche muito o saco esse negócio de “tou orando por você”… ah vá!! vira o disco!! rsrs… religião proselitista dá nisso, uma arrogância do caramba!!

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  4. rubens osorio disse:

    Pô, meu, num dexô o cara nem chegar no amém… mininu malvado!
    Agora, sério: hehehe… foi muito engraçado… não, não! foi trágico, isso sim! Podemos orar pelo infeliz? Ele precisa MUITO!

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  5. robertarez1 disse:

    Muito bom! Queria saber mais sobre isso “de estar virando mendigo”… você fala do caminho de simplicidade voluntária por aqui? (sim, essa frase ficou estranha, eu sei rs)

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  6. Louise Madeira disse:

    Genial, Tom. Genial!

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  7. Luiz Cesar disse:

    Ha! A impressão das (pseudo)ortodoxias reformadas. Quem sabe um dia tentaremos um (tri)álogo com Jesus pra rever isso… Quando você escreve usando o coração é esse o resultado: nos deixa alegremente chocados.

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  8. lucasrigonato disse:

    Tom, gostei.
    sabe q isso nunca acontece comigo?
    pouquissimas, ou nenhumas vezes fui confrontado da maneira como vc poe no texto
    e eu queria, pra q acontecesse algo daquele tipo
    uma vez, uma unica vez meu pai tb veio com a historia do temor de deus

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  9. O triste é constatar que essa fusão de diálogos reais acontece aos montes por aí, Tom. Já pessoas amando e se importando, isso ainda é raro.
    Valeu por publicar, e que o diálogo prospere (desculpagente).

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  10. Irene Costa disse:

    Tom, essa é do Yago Martins. Você o conhece? (http://www.facebook.com/YagocMartins?hc_location=stream).
    “Antigamente, o único lugar onde cada pessoa possuía sua própria verdade se chamava hospício. Isso deve dizer algo sobre o cristianismo moderno”. Gostei do seu texto e penso como o Yago.

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  11. hernanpimenta disse:

    Boa, velhinho.

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  12. Cristiano Deveras disse:

    Hehehehe, bom uso da dialética… Belo texto. ficanapaz

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  13. Nubia disse:

    kkkk Tom, larga de ser resistente!

    Tamo junto!

    Bjo

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  14. aline disse:

    Genial, adorei. Só pra quebrar o gelo, posso orar por vc? kkkkkkkkk

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  15. Excelente seu texto como sempre Tom, infelizmente existem muitas pessoas como a que vc apresenta, uma pena.Dia desses eu escrevi uma tira abordando esse tipo de “preocupação cristã”, quando eu colocar no meu blog te aviso. 😉 Abraço e sucesso!

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  16. Texto incrivelmente desvelador. Me parece que paramos de questionar onde está a fé e somente repetimos fórmulas de orações. Me lembrou aquela passagem: hipócritas seus corações estão longe de mim.

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